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Um Ponto de vista do Marco Zero

Dos cajus do Recife à glória carioca

Depois de muita luta, aos 55 anos, Nelson foi consagrado com uma peça de teatro, intitulada Vestido

Muitos pernambucanos saíram daqui para o Rio de Janeiro. Buscando trabalho, oportunidade de realização ou uma nova vida. Assim foi com o pai de Nelson Rodrigues, o jornalista, autor, cronista. E gênio da palavra. Depois de muita luta, aos 55 anos, Nelson foi consagrado com uma peça de teatro, intitulada Vestido de Noiva. Em consequência, recebeu convite, em fevereiro de 1967, para escrever suas Memórias num dos grandes jornais cariocas, o Correio da Manhã.   

Iniciou assim: "E volto a 1913, ao mesmo Recife e ao mesmo Pernambuco. Mas não era mais Capunga e sim Olinda. Alguém me levou à praia e não sei se mordi primeiro uma pitanga ou primeiro um caju. Ali eu começava a existir. Ainda não vira um rosto, um olho, uma flor. Nada sabia dos outros, nem de mim mesmo. E, de súbito, as coisas nasciam, e eu descobria uma pitangueira ou um cajueiro”.

Ao longo do tempo, Nelson Rodrigues foi descortinando para os leitores seu universo: uma úlcera, Dostoievski, a morte. E seus amigos. Sobre a úlcera, companheira de todas as dores e noites insones, escreveu: “Pouco depois, entro numa leiteria (o certo é leitaria, mas prefiro o errado). Trato minha úlcera a pires de leite. Como se ela fosse uma gata de luxo". Por sua vez, Dostoievski era sempre lembrado pelo autor, especialmente Roskolnikov, personagem de Crime e castigo. Como nesse trecho: “Recentemente, Paulo Francis falava na demência inável de Dostoievski. De acordo. E daí? Outro demente inável, e de rasgar dinheiro, seria Tolstoi. E ainda outro, que podia ser amarrado num pé de mesa, o Shakespeare de Ricardo III. Só o Pedro Calmon não é demente”. Pedro Calmon (1902-1985) foi historiador, professor e membro da Academia Brasileira de Letras.

Vez em quando, lembrava sua terra, como na crônica de 17.02.1967: “Falei do mar e volto a ele. Tenho poucas obsessões que cultivo, com paciência e amor. Uma delas é o mar. Qualquer praia vagabunda, mesmo a de Ramos, tem para mim um apelo mortal. Às vezes, penso que já morri afogado em vidas adas ou morrerei afogado em vidas futuras. Gosto até de cheiro de peixe podre”. Sobre a morte, escreveu: “Quando meu irmão Mario Filho morreu, escrevi que a morte é anterior a si mesma. Ela começa muito antes, é toda uma luminosa e paciente elaboração. Nos seus últimos dias, Mario Filho teve a lucidez, a sabedoria, a chama de quem vai morrer. Não vi no seu rosto, no seu último rosto, nenhum espanto, nenhum medo, nenhum ressentimento. Rosto tão doce, tão comivo, tão irmão. Parecia uma morte consentida, quase desejada. (...). Naquele momento, descobri que não se deve adiar uma palavra, um sorriso, um olhar, uma carícia”.

A estreia da peça Vestido de Noiva foi saudada pelos críticos. Mas ele esperava o conceito e o prestígio do poeta Manuel Bandeira. Na crônica de 19.04.1967, Nelson escreveu: “Depois do trabalho, fui para casa. Tranquei-me no quarto como se fosse praticar um ato solitário e obsceno. Comecei a reler o poeta. O final dizia assim: Vestido de Noiva, em outro país, consagraria um autor. No Brasil, consagrará o público. Antes de mais nada, o poeta influiu na minha autoestima”. No mês seguinte, em 20.05.1967, Nelson disse assim: “Se me perguntassem qual é o grande e irredutível abismo entre a velha imprensa e a nova, direi: a linguagem. Claro que existem outras dessemelhanças, além da estilística. Tudo o mais, porém, é irrelevante. Basta a redação de uma e de outra para datá-las. Examinem duas manchetes: uma de 1908 e outra de 1967”.

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