Nelson Rodrigues. Ou as chuteiras imortais
"Só jogador medíocre faz futebol de primeira. O craque, o virtuose, o estilista, prende a bola"
A prosa poética de Nelson Rodrigues eava do cotidiano amarrotado de ciúme à paixão do futebol. Ao longo de vinte anos, escreveu crônicas semanais sobre gols. E a ausência deles. Ruy Castro reuniu setenta delas em À Sombra das Chuteiras Imortais (Companhia das Letras, 1993, São Paulo). Ele as escrevia sob a forma de batalhas épicas. Na dimensão da eternidade. Em 04.02.1956, a Manchete Esportiva publicou Rigoletto de lança perfume. Dizia assim: “Todos reagem com esse pânico municipal. Todos. Menos um: o juiz de futebol. O único ser que está não sei se acima, se abaixo do rapa, imune ao pânico que ele deflagra, o único é o juiz de futebol. É o único ser inamovível, inexpugnável”.
E continua: Todos os domingos, 100 mil, 200 mil pessoas o chamam de ladrão. Seja ele um Abraão Lincoln, um Robespierre, uma Maria Quitéria. Não importa. Taxam-no de gatuno e de tudo o mais. (...). Só o juiz de futebol lava as mãos diante do furor coletivo. Nem sempre foi assim. No ado, lavrava o suborno. Em 1915, havia um juiz que se vendia até por um maço de cigarro. Um dia recusou a oferta de 20 mil réis. Não houve jeito de aceitar. Dois ou três dias depois, ou a carrocinha de cachorro e o recolheu. O árbitro deixou-se levar. Ia no carro, feliz e jucundo como um Rigoletto de lança perfume.
Em 29.06.1958, o Brasil sagrou-se campeão mundial, em Estocolmo. Vencendo a Suécia por 5x2. Uma semana depois, Nelson publica crônica sobre Didi, meia armador brasileiro, intitulada O Triunfo do Homem. Disse assim: “Não se podia desejar mais de um homem. Ninguém que jogasse com mais gana, mais garra, mais seriedade. Nem sempre marcava gols. Mas estava fatalmente atrás dos tentos alheios. Era quem amaciava o caminho. Com uma ginga de corpo, desmontava a defesa inimiga com lances em profundidade. Não foi só o jogador único.
Foi algo mais: um homem de bem. O que ele demonstrou de constância, de bravura, de entusiasmo. Um brasileiro de altíssima qualidade humana. A partir deste Mundial, o brasileiro a a ver Didi como um homem de bem. Pois sabemos que nenhum escrete levanta um campeonato do mundo sem extraordinárias qualidades morais”.
Em 17.06.1962, o Brasil tornou-se bicampeão mundial em Santiago do Chile, vencendo a Tcheco-Eslováquia por 3x1. Na crônica sobre o resultado, Nelson disse assim: “Outrora o brasileiro era um inibido até para chupar Chicabon. Agora, não. Cada um de nós foi investido de uma vidência deslumbrante. Nós sentíamos o bi, nós o apalpávamos. E, a partir de ontem, vejam a como a crioulinha tem o élan, o ímpeto, a luz de uma Joana d’Arc”. (...). Setenta e cinco milhões de brasileiros profetizaram o triunfo. Amigos, depois da vitória, não me falem da Rússia. Eis a verdade: foi a vitória do escrete e mais, foi a vitória do homem brasileiro, ele sim, o maior homem do mundo. Hoje, o Brasil tem a potencialidade criadora de uma nação de napoleões”.
No dia 01.05.1966, a seleção brasileira, em jogo preparatório para a Copa, derrotou a seleção gaúcha por 2x0. Nelson escreveu crônica que, a certa altura, dizia o seguinte: “Mas o que eu queria dizer é que, como qualquer multidão, aquela massa, estava triste, fúnebre, inconsolável. E só mesmo meu personagem da semana, Mané Garrincha, conseguiu arrancar do Maracanã entupido uma gargalhada generosa total. Vocês se lembram de Charlie Chaplin, em Luzes da Ribalta, fazendo o número das pulgas amestradas? Pois bem, Mané deu-nos um alto momento chapliniano. E o efeito foi uma bomba. Na primeira bola, o público já começou a rir. O povo ria antes da jogada, da graça, da pirueta. Ria adivinhando que Garrincha sua grande ária, como na ópera. Só jogador medíocre faz futebol de primeira. O craque, o virtuose, o estilista, prende a bola. Sim, ele cultiva a bola como uma orquídea de luxo".