Fãs de Lady Gaga, os "little monsters" detalham idolatria pela diva pop
Reunidos no Rio para show na Praia de Copacabana neste sábado (3), iradores da cantora, que têm apelido próprio, falam de vínculo "maternal" com a artista
Lady Gaga é uma figura esquisita.
Na noite da última quarta-feira (30), enquanto dezenas de fãs se aglomeravam na porta do Copacabana Palace — onde a artista está hospedada, no luxuoso endereço em frente ao palco em que ela se apresentará no sábado (3), na praia, para uma multidão estimada de 1,6 milhão de pessoas —, funcionários do hotel distribuíram pizzas para a massa de iradores da cantora.
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Nada de bilhete ou qualquer aparição da americana na janela, algo por que todos ansiavam. A única informação, reada por seguranças, era que a comida se tratava de um presentinho da estrela. Foi um auê.
Desde que surgiu no cenário musical, há 17 anos, com a alcunha inspirada na música “Radio Ga Ga”, do Queen, Stefani Joanne Angelina Germanotta se apresenta (muitas vezes sem dar as caras) como uma equação de difícil decifração.
A imagem da americana loura, cisgênero e de pele branca — que, com o primeiro disco “The fame”, de 2008, questionou as ideias de fama e glamour, catapultando a própria vida a um permanente e excêntrico ato performático, com trajes e gestos não convencionais — é tida como símbolo da mais completa inadequação.
Os iradores da moça não só absorveram tal faceta como carregaram as tintas dessa marca na própria pele. Daí é fácil entender o apelido de “little monsters” (ou “monstrinhos”) dado aos seus “súditos” pela própria Lady Gaga na esteira do lançamento do álbum “The fame monster”, de 2009.
"Se Madonna, a primeira figura criada dentro da lógica de diva pop, construiu uma carreira pautada pela ideia de uma mulher forte e hercúlea, Lady Gaga traz um apelo que é exatamente o oposto: ídolo frágil" analisa Thiago Soares, professor da Universidade Federal de Pernambuco e pesquisador de cultura pop.
"Veja bem, Lady Gaga até adoece! O fato de ela não ter vindo ao Rio em 2017 devido a uma crise de fibromialgia, o que a fez cancelar um show na véspera, talvez seja um dos momentos mais singulares na história da música pop. Gaga não é a celebridade que nunca falha, e isso a põe dentro do espírito do tempo. A geração que consome Lady Gaga se conecta com a cantora por vínculos afetivos ligados a uma ideia de vulnerabilidade emocional, desconforto e disformidade"
Cicatrizes em arte
Desde o início da semana, quando a cantora desembarcou na capital fluminense e não arredou os pés do hotel, o entorno do Copacabana Palace virou pista para uma festa estranha com gente esquisita.
E isso, vale frisar, são os próprios fãs — ou, melhor, os “monstrinhos” — que dizem.
"Gaga é a personificação de quem abraça suas imperfeições e transforma suas cicatrizes em arte" diz o servidor público Charlie Facholli, de 39 anos, “little monster” de Santo Anastácio, no interior de São Paulo.
"Gaga mostra que ser “diferente” é exatamente o que nos torna poderosos. O que me chamou atenção, à primeira vista, foi a excentricidade, com ela entregando performances e estimulando a esquisitice alheia"
O termo está longe de ser algo pejorativo. Por “esquisitice”, traduz-se aquilo que foge à norma — e que frequentemente é alvo de violência.
Não à toa, pessoas que se identificam com uma das letras da sigla LGTBQIAP+ compõem a maior parte dos fãs da cantora.
Noiva do empresário Michael Polansky, Gaga, de 39 anos, se reconhece como bissexual e é hoje uma ativista em prol de gays, lésbicas, drag queens...
Em 2012, ela criou a Fundação Born This Way após a morte do adolescente americano Jamey Rodemeyer, aos 14 anos, sensibilizar o planeta.
A criança, que usava o YouTube para publicar vídeos com coreografias de músicas da cantora, cometeu suicídio devido ao bullying homofóbico de colegas de escola.
Em fevereiro, ao receber um troféu no Grammy — pela parceria com Bruno Mars no hit “Die with a smile” —, a cantora teceu críticas a posicionamentos recentes do presidente Donald Trump, que estabeleceu uma ordem executiva reconhecendo no país apenas “dois sexos imutáveis, o feminino e o masculino”.
“A comunidade queer merece ser celebrada”, contrapôs Gaga.
"Lady Gaga foi a minha maior companhia durante uma depressão profunda, e isso que me consolidou como fã" comenta o empresário carioca Byron Teixeira, que inscreveu a palavra Gaga no cabelo.
"Muitos fãs foram abraçados pela música “Born this way” numa época em que ninguém nos acolhia, sabe? E a canção fala sobre isto: não importa se você é hétero, branco, preto, gay, lésbica ou bissexual, Deus te fez assim e não existe erro em você. Foi diante dessa mensagem que eu me aceitei"
A história se repete para milhares de fãs:
"“Born this way” é uma virada de chave para uma geração inteira" acredita o maquiador Lucas Rockets, de 26 anos.
"A música diz: “Nasci assim e sou assim.” E ponto, acabou! Na época do lançamento, eu sofria muito bullying e ia para a escola com medo de apanhar. Muita gente me chamava de Lady Gaga para tentar me ridicularizar. Até que, numa apresentação de fim de ano, performei a canção “Bad romance” do jeito mais extravagante. O pessoal ou a me respeitar. Virei o jogo"
Visual arrojado e "montação"
No princípio, era a imagem. Aos 9 anos, Luana Catramby foi fisgada pelo visual “diferentão” — simultaneamente gótico, barroco e futurístico — dos clipes de Lady Gaga transmitidos pelo programa “TV Z”, do Multishow.
Como presente de aniversário, a menina pediu aos pais uma festa temática inspirada na cantora.
Quinze anos depois, a boneca de açúcar que decorou o bolo da comemoração, reproduzindo a figura da artista, segue preservadíssima no congelador da jovem.
"Peguei um carinho emocional por aquele objeto" brinca a dentista, hoje com 25 anos.
"Eu era o patinho feio das amigas na adolescência. Todas gostavam de Justin Bieber e One Direction, e só eu era fanática por Lady Gaga. Por ser mais nova, talvez não entendesse o que ela representava. Tudo em sua imagem me encantava. Achava diferente"
Lady Gaga realmente é um quadro magnético para os olhos. Até os eventos mais protocolares do universo artístico servem de arela para que a americana lance pelos ares todo tipo de convenção — e faça da ideia de “fama”, tema basilar em sua obra, um conceito a ser virado do avesso.
Exemplos não faltam: em 2010, ela foi a uma premiação musical com a pele coberta por pedaços de carne crua; em 2011, chamou atenção no Grammy dentro de um ovo gigante; no último ano, acompanhou o lançamento do documentário “Gaga Chromatica Ball” com um vestido composto por uma peça automotiva.
A mega-apresentação na Praia de Copacabana — um espetáculo teatral classificado pela artista como “ópera pop” — reunirá na plateia um mar de gente “montada” com figurinos irreverentes, além de pessoas com a idolatria inscrita na pele, como a designer Isa Stracieri, que tem 33 (sim, trinta e três) tatuagens com referências a Lady Gaga espalhadas pelo corpo.
"Venho de uma família muito humilde e, para mim, arte era só pintar e desenhar. Meu primeiro contato verdadeiro com arte foi por meio de Lady Gaga" diz Isa.
"A partir dali, comecei a pesquisar a história da arte pop em geral para entender todas as referências que ela trazia. E isso salvou a minha vida, sabe? Para mim, Lady Gaga é como uma figura materna"
Folia fora de época
Desde a última quinta-feira (1º), basta dar um rápido eio por Copacabana para notar que o bairro se transformou em carnaval.
Pessoas de diferentes regiões do país circulam pelas ruas com menções espalhafatosas a capas de álbuns, singles, figurinos...
"A liberdade que ela expressa através da moda é muito forte. Ver uma artista com esta coragem é importante", opina a designer de interiores Beatriz Oliveira, de 25 anos, que idealizou e costurou um look inspirado numa das famosas roupas da diva pop.
Katherine Monroe fez o mesmo. iradora do cancioneiro de Gaga, a americana de 66 anos, que há duas décadas vive no Brasil, se sente “totalmente integrada entre os little monsters”, apesar de se reconhecer como exceção entre o público predominantemente jovem.
"Lady Gaga atrai quem tem fome de pensamento" defende ela, que também é cantora e tem circulado por Copacabana travestida de Gaga, com peruca e fantasia.
"Essa experiência não a de uma boa brincadeira. Mas, no fundo, é tudo sobre coração e amor"
A expectativa entre os fãs ouvidos pelo Globo é que Lady Gaga crie, no Rio, a pista de dança mais segura do mundo para todo e quaisquer tipos de “pequenos monstros”.
"Gaga é muito mais do que música dançante" diz o engenheiro Pedro Budny, homem gay criado numa igreja conservadora e que conheceu a obra da cantora por meio do irmão, igualmente homossexual.
A ida ao show, para ele, será emocionante. Francisco, o irmão um ano mais velho, morreu em 2024. Os dois cultivavam o desejo de ir juntos a uma apresentação da ídolo, que teve papel preponderante para que ambos aceitassem a própria sexualidade.
"Enquanto a gente se descobria, cada um na sua jornada, as músicas da Gaga eram o espaço seguro para podermos simplesmente existir. As canções nos trouxeram uma força e nos deram uma perspectiva de um mundo que não conhecíamos. E isso, para dois adolescentes, foi transformador. Hoje, com a partida do meu irmão, tudo ganha outro significado" emociona-se o rapaz, de 31 anos.
"Para mim, este show será uma celebração da memória e da liberdade. E também a exaltação da ideia de mergulhar em quem se é de verdade, mesmo que isso não seja o mais convencional. Como diz a letra “Just dance”, apenas dance e ficará tudo bem"