Nana Caymmi, uma cantora que fazia sofrer
Na simbiose entre emoção e técnica, a rainha dos sambas-canção
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Era impossível, no canto de Nana Caymmi, estabelecer onde terminava técnica e começava a emoção. Pouquíssimas intérpretes brasileiras – Elis Regina e Maria Bethânia entre elas – combinam os dois aspectos com tamanha força.
Também era muito difícil, ao escutá-la falar, entender onde terminava a sinceridade e começava o sincericídio. E foi por isso que a cancelaram quando defendeu Jair Bolsonaro em 2019, então no início do mandato dele.
Mas o que fica é a música. E Nana não fez dela sua profissão, mas sua vida. Cantava como se o coração fosse saltar da boca, embora sem errar uma nota.
Estreou com tudo aos 19 anos, dividindo com Dorival Caymmi o “Acalanto” que o gênio baiano fizera para ela. Já mostrava que seria a segunda melhor intérprete das canções do pai – atrás apenas dele mesmo.
Dentre tantos momentos como aquele, brilho em “Só louco”, que fez sucesso como tema de novela. Poucos antes de Caymmi morrer, fez dois belíssimos discos com a obra dele:
“O mar e o tempo” (2002) e “Quem inventou o amor” (2007). Acreditava que o pai seria esquecido e dizia que tinha como missão cantá-lo.
Foi das melhoras tradutoras de outras obras.
Da de Milton Nascimento, em “Ponta de areia”, “Cais”, “Clube da esquina nº 2”, “Fruta boa” etc – sem esquecer “Sentinela”, em que ela emocionava à capela. De Tom Jobim e Vinicius de Moraes, juntos ou separados, “Derradeira primavera”, “Medo de amar”, “Canção em modo menor”, “Por a toda minha vida” etc.
Ainda foi muito importante na difusão de trabalhos de contemporâneos como João Bosco, Ivan Lins e Sueli Costa.
Se fôssemos eleger um terreno que Nana dominava como ninguém, este era o dos sambas-canção – tristes, cortantes.
Antes de todos, os do pai, como “Nem eu”, “Não tem solução” e “Você não sabe amar”. Mas, também, os lançados por outros no ado, como “Canção da manhã feliz” (Haroldo Barbosa e Luiz Reis), “Amargura” (Radamés Gnattali e Alberto Ribeiro) – num arranjo de seu irmão Dori Caymmi que fez Radamés chorar – e “Neste mesmo lugar” (Armando Cavalcanti e Klécius Caldas).
Dois discos são fundamentais para registrar sua excelência nessa área:
“Voz e suor” (1983), acompanhada apenas pelo piano de Cesar Camargo Mariano (forte candidato ao melhor item da discografia da cantora), e “A noite do meu bem – As canções de Dolores Duran” (1994), no qual, entre interpretações que beiram as definitivas, está o seu duo com Tom Jobim, absurdo de tão delicado, em “Por causa de você”.
Essa característica, de uma cantora que fazia sofrer e não fazia concessões a interesses comerciais, a deixava com menores chances de emplacar grandes sucessos.
Mas conquistou alguns graças a produções de TV, e aí se destaca “Resposta ao tempo” (1998), de Cristovão Bastos – o pianista que costumava acompanhá-la em shows – e Aldir Blanc.
O bolero nem seria o tema de abertura da série “Hilda Furacão”, mas virou em cima da hora e se tornou um standard da trajetória dela e da música brasileira.
Fez o disco “Bolero” em 1993, aproveitado seu domínio do espanhol, ela que morou na Venezuela nos anos 1960 com o pai de seus três filhos. Mas sua praia era mesmo a língua portuguesa, na qual exibiu maestria até os últimos trabalhos, como em “Nana Caymmi canta Tito Madi” (2019), mais uma coleção de sambas-canção.
Não está claro se ela deixará herdeiras. Mônica Salmaso tem semelhanças, mas, como toda grande cantora, identidade própria.
Nana foi única, inclusive no seu jeito desbocado, até grosseiro, de opinar sobre assuntos e pessoas. Sobretudo, porém, na forma de cantar o amor, o desamor, o melhor que os compositores brasileiros puderam criar. E o que fica é a música.