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DEPOIMENTO

O dia em que viajei com Francisco, o Papa da compaixão

O relato do primeiro voo internacional do Pontífice, de Roma para o Rio de Janeiro

Estive com o Papa Francisco durante um voo de Roma para o Rio de Janeiro, em junho de 2013. Não um voo qualquer, era a primeira viagem internacional do seu pontificado. Eu e mais 67 jornalistas de quinze nacionalidades estávamos lá para registrar a vinda dele ao Brasil a partir daquele avião.

Embarcamos logo cedo. Francisco foi o último. De dentro do avião, vi ele subindo as escadas carregando sua própria bolsa de couro, feito inédito para um Papa até então. Ocupou a primeira classe, sem adaptações especiais. Nas vindas de João Paulo II e Bento XVI ao Brasil, assentos foram transformados em uma cama que ficava à disposição.

Francisco e a pequena comitiva viajavam separados dos jornalistas por uma cortina, que vez ou outra se abria parcialmente por descuido do staff. Pela fresta, dava para vê-lo sorridente, brincalhão com as pessoas à sua volta – mais uma surpresa para um Papa. Nas 12 horas de voo, não dormiu e ou um bom tempo em pé no corredor.

Duas horas depois da decolagem, surgiu na classe econômica, onde estávamos, acompanhado pelo assessor de imprensa para falar algumas palavras aos jornalistas. Pulei feito louca alguns assentos, derrubei a bandeja de comida, cheguei a uma fileira de distância dele, o mais perto que podia ser.

O tempo parou por segundos para mim. Vi seus sapatos pretos rotos na ponta, com o salto gasto, os dentes amarelados. A cruz de ferro e o anel papal que não era de ouro, mas de prata dourada. O olhar firme e de compaixão.

O que seriam minutos de conversa, virou uma hora. Era a primeira vez que expunha suas ideias publicamente. Quebrou protocolos enquanto falava, um seguido do outro. Colocou a mão no bolso da vestimenta papal, como se fosse uma roupa qualquer. Inclinou e apoiou o corpo no banco para tentar ouvir um jornalista mais distante, abaixou para pegar um fone de ouvido que havia caído perto dele.

Tocou em temas espinhosos para o Vaticano. Disse que queria encontrar no Rio de Janeiro, onde lideraria a 28º Jornada Mundial da Juventude, jovens no seu meio social, não isolados como grupo. Na mais ousada declaração de um Pontífice sobre homossexualidade, proferiu: "Se uma pessoa é gay, busca Deus e tem boa vontade, quem sou eu para julgá-la?"

Chamou cada um de nós para uma bênção. Fiz menção de beijar sua mão, um movimento simbólico na religião católica de respeito a um Papa, mas ele me interrompeu e apertou minha mão com firmeza e falou, com o rosto muito próximo e baixinho: "Reze por mim". A frase seria repetida inúmeras vezes durante seu pontificado até o fim.

A forma como Francisco agiu e se expressou naquele voo sinalizou as duas maiores revoluções provocadas por ele no Vaticano. A aversão aos costumes luxuosos cunhados há milênios de anos é a primeira delas. Francisco foi o primeiro Papa na era moderna da Igreja a abrir mão de morar no luxuosíssimo Palácio Apostólico. Escolheu a Casa Santa Marta, lugar tradicionalmente recebe hóspedes do Vaticano. Lá, ele fazia as refeições em mesa comunitária, sem cardápio especial. Uma das cenas célebres, ocorrida logo no início do pontificado, foi ter ido até a cozinha e falado para as funcionárias: "Não joguem fora a água do cozimento da chicória. Eu a tomo com gosto. É boa e faz bem".

O segundo grande movimento foi o de imprimir uma nova visão sobre a relação da Igreja com os fiéis. A começar pelos divorciados em segunda união. No credo católico, quem se separa e se casa novamente comete adultério e, por isso, não pode receber o sacramento da comunhão nas missas. Afirmou que a separação pode se tornar moralmente necessária em determinadas situações e que o confessionário não pode ser uma câmara de tortura, mas o lugar da misericórdia do Senhor.

Defendeu as mães solteiras. "As mães solo que optaram por manter seus filhos fora do casamento não devem ser impedidas, mas incentivadas a ter o aos sacramentos", disse por meio de um documento. Mais recentemente, permitiu, pela primeira vez na história, uma mulher na liderança de uma das principais organizações da Santa Sé, o Dicastério para a Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica.

Hoje ficou claro que cada gesto naquele voo de 2013 sinalizou o que viria ao longo dos 12 anos de pontificado. Francisco não mudou a doutrina, mas a olhou com olhar de compaixão.

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