A terceira margem do rio
Uma terça-feira prosaica. Acordo com latidos de cachorro. São sete horas de uma manhã clara, aberta ao azul. Dou uma espiada pela fresta da cortina. E colho (com a vista) mangas das fruteiras no terreno ao lado. Manga espada. Sinto até o cheiro.
Vou à cozinha. Boto a capsula de café (gosto intenso) na máquina. E, enquanto espero, tomo suco de laranja. Vou sorvendo, com restos de sono, os primeiros albores da manhã. A janela é descortino de sons e imagens. Os carros, enfileirados, no costumeiro engarrafamento. E o rio, célere, atravessa os verdes da várzea. Integrando a cidade. Como disse Albert Camus, as cidades se fecham em si. Na tessitura urbana de casas e ruas. Mas há cidades que se abrem ao sol, ao céu. Como sua Argel. Ou como a minha Recife, atlântica, calcárea, estuarina e, ao mesmo tempo, de montes. Como Guararapes.
Há cidades de absintos, barrocas, vestidas com a roupa da época. Lembradas em tintas fortes, vermelhos, sanguíneos, pintadas por Caravaggio. Outras cidades estão ocultas pela poeira de bombas. Mas, de repente, após insistentes pedidos, um cessar fogo surge no horizonte. E a possibilidade de uma paz sintomática, não sistemática, é desenhada nos escaninhos da espera.
Há também cidades nas quais se compra um e de liberdade. Por gesto vil. A preço alto. Evitando prisão por crimes odientos. E há cidades que, de tão maravilhosas, esquecem de cuidar das pessoas. De protegê-las, de defendê-las do mal, vestido de falsa honra. Cuidar principalmente de mulheres que têm o dom de lutar, de falar, de zelar do coletivo.
Continuo olhando o rio. Vim do litoral Sul. Onde o mar é um presente. Aqui para as praças do Norte. Onde o céu é violáceo. Onde achei o rio, encontrei a várzea e colhi amarelos e azuis. Mas, para além da ecologia urbana e de humana paisagem, percebi a terceira margem do rio. O rio, para mim, é o Capibaribe: cor, fluência, consciência, manguezal, caranguejo com cérebro.
E, para mim, o rio também é metáfora. Lembrado do conto de Guimarães Rosa (A terceira margem do rio, em Melhores Contos, editora Global, São Paulo, 2020, pg. 226). Que trata de um homem que “manda fazer uma canoa para si, sem alegria nem cuidado. E a canoa saiu, se indo, não voltou, os tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos”.
Vivemos tempos divididos, subtraídos, subjugados. Sem afeto, nem amorosidade. As pessoas, desfraternas, não se reconhecem, umas às outras. Meu jeito foi, gradualmente, silentemente, ir indo. Na minha canoa. No meu rio. Para a terceira margem.
Lá, onde o ameno existe. Onde é possível juntar pedaços de mangue de uma e de outra margem. De um e de outro lado. Onde o poeta é ouvido, acolhido no mar salgado de Camões, para receber o que lhe era devido. E diz:
“Agora eu era o herói, e o meu cavalo só falava inglês,
A noiva do cowboy era você além das outras três,
Eu enfrentava os batalhões, os alemães e seus canhões,
Guardava o meu bodoque e ensaiava um rock para as matinês”.