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opinião

Francisco, Mujica e o imaginário progressista  

Em menos de um mês, se foram as duas principais referências do imaginário progressista do nosso tempo: o Papa Francisco e o ex-presidente uruguaio José Mujica.

As suas trajetórias políticas falam por si. A começar por Mujica, conhecido pela agenda transformadora que inclui legalização da maconha, casamento entre pessoas do mesmo sexo e o programa habitacional “Juntos”, responsável pela oferta de moradia digna a milhares de uruguaios.

Já o Papa Francisco, era progressista “não por filiação partidária, mas por formação pastoral, vocabulário político e estilo de atuação”, como disse a jornalista Sylvia Colombo. Seja em encíclicas ou missas, não perdia oportunidade de denunciar a desigualdade e a indiferença das elites pela dor dos pobres, incluindo os imigrantes.

Juntos, Francisco e Mujica redefiniram os contornos do progressismo. A cada alerta para os riscos do colapso ambiental, submeteram o desenvolvimento econômico aos limites do planeta. De agora em diante, já nenhum programa progressista pode ignorar a crise ecológica e a exaustão de recursos, em oposição ao “desenvolvimentismo” que marcou teólogos da libertação e políticos de esquerda no ado.

Complementar a isso, ambos fizeram, de suas vidas exemplo das ideias que defendiam. Diante da indiferença das elites, Francisco lavou os pés de refugiados muçulmanos na Praça de São Pedro, enquanto Mujica doou 90% de seu salário como presidente para instituições sociais. Diante da exaustão de recursos do planeta, Francisco andava em um Fiat 500 e Mujica em seu Fusca.

O valor atribuído às práticas individuais não era mero romantismo. Tanto um quanto o outro, sabiam que a pobreza e o colapso climático não são resultados de condutas individuais, mas sim de um modo de produção feito para gerar excedente e ampliar o consumo. Inúmeros de seus discursos falavam disso.

Só que ao menos desde a ascensão das redes sociais, as distinções entre público e privado se evaporaram. Já não conta apenas a performance pública do indivíduo. Avaliação de seu desempenho leva em conta toda a sua vida, inclusive a sua intimidade. Nos tornamos, afinal, consumidores de subjetividades.

Em tal contexto, não basta fazer política, é preciso que a política se torne um estilo de vida, um modo de pensamento e de vida. Como afirmou Mujica: “o capitalismo é uma cultura e devemos responder e resistir a ele com uma cultura diferente”.

O desafio é a coerência permanente entre estilo de vida e narrativa política. Para alguns atores, isso nem chega a ser um desafio e tanto. Veja-se o caso de Donald Trump: mesmo após entrar na política, não precisou abandonar o luxo e a ostentação que caracterizam o seu estilo de vida, já que em nada contrariam as suas políticas de segregação e descompromisso ecológico. Muito pelo contrário.

Mas para os progressistas que defendem combate à pobreza, responsabilidade ambiental e divisão de poder, essa coerência impõe uma série de desafios práticos. Sem falar que vários atores desse campo tornaram isso ainda mais difícil: Daniel Ortega, Nicolás Maduro, Raul Castro... ditos “progressistas” que deram margem às críticas “woke” que apontam a distância entre o discurso e a prática de atores progressistas.

Daí porque a atuação de Francisco e Mujica foi tão decisiva – o que se soma, ainda, ao fato de que ambos foram excelentes comunicadores. Serão lembrados os inúmeros bordões de Francisco (“globalização da indiferença”; “cultura do descarte”; “idolatria do dinheiro”); as frases de efeito de Mujica ("pobre não é quem tem pouco, mas quem precisa de muito”); e os inúmeros documentários sobre cada um deles ("Papa Francisco: Um Homem de Palavra", “Dois Papas”, “Os Sonhos de Pepe”, “El Pepe, Uma Vida Suprema”, todos disponíveis no streaming).

A despedida das maiores referências do imaginário progressista só aumenta, ainda mais, a responsabilidade dos que ficam.



* Presidente do Instituto Brasileiro de Finanças Digitais (IFD), diretor da Câmara de Comércio Brasil-Portugal (PE).

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