Graça, Gracinha, Gal. Ou Gal Costa
O filme. Ou documentário. Como queira. Não apenas. Gal é paisagem. Época, testemunho. De povo, de país, de música.
Gal tem uma cultura por trás. Uma teoria. Uma antropologia.
Porque Gal não é só Gal. Gal é uma nação interditada na sua liberdade. Estávamos em 1966. Em 1968, as instituições receberiam o golpe de 13 de dezembro de 1968. Cassações de mandatos, suspensão de eleições, fechamento do Congresso.
Um grupo de artistas, cantores, compositores, instrumentistas baianos chegava a São Paulo. Caetano, Gil, Gal. Para mim, o filme traz três dimensões: a dimensão artística, a vida de Gal; a dimensão histórica, o bloqueio da criatividade por regime autoritário; a dimensão ambiental, urbana, citadina, existencial, entre o espírito paulista e a alma carioca.
A dimensão artística mostra o tempero forte, personalíssimo, de Gal. Ela não vai com os outros. Ela tem opinião. E mais que isso: tem rumo. Sabe o que quer. A partir do nome, Gal.
Só cai uma vez. Quando ela perde o prêmio no festival da Record e Caetano é preso em São Paulo. Duas pancadas. Ela não a. Tranca-se no quarto. Um amigo a coloca no colo. E lhe dá um choque de chuveiro.
O reconhecimento do talento de Gal é imediato. O talento e o batom. Vermelho. Não é um vermelho de Caravaggio. É um vermelho de Carybé. De cravo e canela. Das tardes de Vinicius em Itapoã.
A dimensão histórica é a moldura séria do filme. É página de jornal. Folha de cartório. É a história sofrida do Brasil. Contra o autoritarismo. Acentua não apenas a violência. E o silêncio do espaço público. As receitas de bolo do Estadão. Mas ressalta também o drama pessoal.
De um lado, o esforço para escapar da censura. Ah, Chico, maravilhas de Julinho da Adelaide. De outro lado, o medo coletivo da prisão, do desaparecimento. O apagamento da sensibilidade, da criatividade.
E, aqui, entra a terceira dimensão: a dimensão urbana, ambiental. A diferença entre o sol do Rio e a penumbra de São Paulo. Quando Gal reage à anomia do exílio de Caetano, ah, London, London, vai para Ipanema. As areias de Gal. O mar, o azul, o trópico, a luz, a inspiração.
Cidades não são só lugar. São céu e terra, rio e mar, peixada e cozido, feijoada e caipirinha. São formas de viver. Modos de resistir. Maneiras de expressar alegria. E tédio. O barquinho, o corcovado, as águas de março.
Lembro de colega do Conselho de Desenvolvimento Urbano, em Brasília, Maurício Nogueira Batista. Carioca de Ipanema. Vivia me chamando para ir ao Rio. Conhecer um bar que, segundo ele, era uma beleza. Fui. Cheguei lá, perto da Lagoa, era uma calçada. Quase literalmente. Muita gente e pouco bar. As pessoas ficavam cantando e sambando do lado de fora. Uma curtição. Animação, que só o carioca sabe produzir. Quer dizer, o que vale é o encontro, a vida, o papo. Os corações, orações, de Ipanema.
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