IAHGP recepciona Cervantes e Dom Quixote - 2ª parte
Dando continuidade ao assunto da palestra…
2ª Parte - O engenhoso fidalgo Dom Quixote de la Mancha (I Parte, 1605 - II Parte, 1615. Madrid).
O livro Dom Quixote, pioneiro do romance moderno, tem uma considerável estrutura. Na elaboração, o autor Miguel de Cervantes escreveu mais de 380.000 palavras, sendo 23.000 diferentes, nos textos introdutórios e no enredo, entre os 52 capítulos da primeira parte e os 74 da segunda.
Os personagens mais citados são os dois protagonistas: Dom Quixote, por 2.174 vezes, e Sancho Pança, por 2.147. Dulcinea del Toboso aparece 282 vezes e, muito em função dela, a palavra senhora 616. Pela religiosidade refletida, Deus aparece 661 vezes e o céu 251. Relevantes nos temas: verdade, 431 vezes; mundo, 394; lugar, 345; tempo, 327; “história”, 249; liberdade, 92; e justiça, 50.
O Dom Quixote é chamado de “o livro dos livros” em razão da origem de sua história… a leitura excessiva de um leitor, o personagem principal do enredo, sobre as antigas ordens das cavalarias (as de Cristo, de Malta e outras andantes), bem como por sua universalidade e influência no mundo literário e cultural.
No Capítulo I (I Parte), Cervantes relata, em síntese: Num lugar de la Mancha, de cujo nome não quero lembrar, vivia um fidalgo que beirava a idade de cinquenta anos… morava em uma fazenda, com uma sobrinha, uma ama e um trabalhador. Este fidalgo, de tanto ler livros de cavalarias, sem parar, de pouco dormir, e só pensar, perdeu o juízo… de modo que teve um estranho pensamento, o de fazer-se cavaleiro andante e sair mundo afora atrás de aventuras para praticar tudo o que lera… não havia história mais certa. Assim, nascem as figuras de Rocinante (o pangaré do fidalgo), de Dom Quixote de la Mancha (o fidalgo transfigurado) e de Dulcinea del Toboso (a senhora imaginada), para cumprir a empreitada cavaleiresca.
Há um fato singular: o auge das cavalarias ocorreu nos séculos XII e XIII, na Idade Média, e o mundo que o novo cavaleiro vai enfrentar já estava na Moderna. Portanto, venturas e desventuras podem se equiparar, sem prejuízo do mérito… lutar por justiça é a missão.
No Capítulo II (I Parte), ocorre a “primeira saída” do Dom Quixote, “sai ao mundo a fim de consertar o torto, desfazer agravos, defender as viúvas, amparar as donzelas, socorrer os órfãos, castigar os soberbos e premiar os humildes”. Cavalgando, ele devaneia e conecta o valor das façanhas que pensa em realizar com a sua futura história, dizendo: “Ditosa idade e século ditoso, em que sairão as famosas façanhas minhas… Ó tu, sábio encantador, quem quer que sejas, a quem há de tocar ser o cronista desta peregrina história!”.
Após Dom Quixote retornar para casa, da “primeira saída”, em más condições devido a uma luta, Capítulo VI (I Parte), seus amigos, o padre (Pero Pérez), leitor e culto, e o barbeiro (Maese Nicolás), esclarecido, com a sobrinha e a ama, que culpam os livros pela loucura dele e desejam destruir todos, entram em acordo… os livros serão jogados na fogueira, mas, sem que antes o padre revise cada um, com ajuda do barbeiro. Na avaliação de cada livro, o padre faz comentários notáveis, salvando os de qualidade e sem risco de afetar o cavaleiro. …O escrutínio da biblioteca de Dom Quixote é um acontecimento célebre da literatura. Um legado à formação de bibliotecas, à conservação de livros, ao exercício da leitura e à crítica literária. Por trás dessa ação (metáfora), há uma valorização da cultura dos livros e uma precaução quanto à censura e à repressão por parte do Santo Ofício da Inquisição e o seu temido “Index Librorum Prohibitorum et Expurgatorum”.
A cena dos moinhos de vento, Capítulo VIII (I Parte), equipamentos basilares da primeira aventura da “segunda saída” de Dom Quixote, em que se deu a estreia nas lutas do escudeiro Sancho Pança, é a mais emblemática, a mais iconográfica e a mais famosa do romance… talvez, a maior metáfora da literatura. Basicamente, combater gigantes imaginários representa uma crítica social a um período ainda muito injusto e cruel da humanidade.
No Capítulo IX (I Parte), há uma inusitada troca de autores. Cervantes, no seu próprio livro, com criatividade genial, informa ter achado um manuscrito e, com base no conteúdo dele, a a narração da história de Dom Quixote, sem abdicar da participação nela, em uma ou outra ocasião, para quem diz ser o seu verdadeiro autor, o historiador árabe Cide Hamete Benengeli, de agora em diante o primeiro autor, que afirma… “devem ser os historiadores pontuais, verdadeiros e não apaixonados, sem que o interesse nem o medo, o rancor nem a afeição os façam desviar o caminho da verdade, cuja mãe é a História, êmula do tempo, depósito das ações, testemunha do ado, exemplo e aviso do presente, advertência do porvir.
Uma das personagens mais iradas do Quixote é a pastora Marcela, Capítulos XII-XIII (I Parte). Contrariando o costume de se casar, como a única opção de vida ao convento, Marcela resolve ser pastora e trabalhar no campo, por não aceitar um casamento forçado. Em um debate, Marcela, altiva, declara: “Por ora, ainda não quis o céu que eu amasse por destino, e é escusado pensar que terei que amar por deliberação de outrem”. A pastora Marcela, em seu tempo, se opôs às distorções sociais aplicadas às mulheres com outras pérolas… por isso é considerada um símbolo da liberdade feminina.
Exemplar e atual é o desempenho de Sancho Pança como governador da ilha Baratária, na “terceira saída”, Capítulo XLII - XLIII (II Parte). Sancho saiu-se bem no exercício do cargo, atento a um dos conselhos que recebeu de Dom Quixote: “Procure descobrir a verdade por entre as promessas e dádivas dos ricos, como entre os soluços e oportunidades dos pobres”. Assumindo a responsabilidade, disse: “Governarei esta ilha respeitando direitos e não aceitando suborno”. E, desligando-se do governo, coerente e honrado, não hesitou: “Sem dinheiro entrei nesse governo e sem ele saio”.
Em um certo caminho, Capítulo LIV (II Parte), na “terceira saída”, Sancho Pança encontra um vizinho, disfarçado, o mourisco Ricote, nascido na Espanha; converso. Ele vivia na Alemanha e foi incluído na leva de “mais de 300.000 árabes expulsos (1609-1613) do Reino (Filipe III), em virtude da intolerância religiosa da Igreja Católica”. …Ricote lamenta a sua condição de exilado e a separação da família, com a filha em Valência e a esposa em Argel, e que sentia saudades da terra que amava, o motivo de estar nesta condição e lugar. Sancho se solidariza com Ricote, tratando-o como um irmão. …Este é um episódio humano sempre contemporâneo.
Concluindo: O mais importante é lutar, lutar por um mundo melhor.
* Membro da Associación de Cervantistas (ES). Autor do livro “Sonho Impossível - O Recife e Cervantes (2024)
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