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OPINIÃO

Mais poder, menos certeza: a perigosa instabilidade do STF

Faz bem para a democracia que o Supremo Tribunal Federal (STF) altere suas posições repetidas vezes sobre matérias já decididas? A recente reviravolta jurisprudencial quanto à chamada prerrogativa de foro de autoridades, inclusive, parlamentares provoca incertezas sobre a estabilidade das interpretações constitucionais e, por extensão, sobre o equilíbrio institucional. 

A trajetória do foro por prerrogativa de função no Brasil oferece uma amostra reveladora de como as dinâmicas institucionais podem afetar a distribuição de poder. Desde 1999, quando restringiu a prerrogativa de foro a crimes cometidos no exercício e em razão do cargo, o Tribunal trilhou um caminho de moderação desse instrumento: perdeu o cargo, perdeu o foro.

Contudo, na semana ada, sob relatoria do ministro Gilmar Mendes, o STF voltou à orientação contida na Súmula 394, de 1964, restaurando uma posição que havia sido superada pelo próprio Supremo, em virtude dos princípios da Constituição de 1988. Dessa forma, foi restaurado o entendimento de que, mesmo perdendo-se o cargo, o foro fica mantido.

Essa decisão reacende dúvidas sobre a atuação do STF em meio a conjunturas de alta tensão.

Nesse cenário, chama a atenção o fato de que os senadores, eleitos pelo povo, são precisamente os responsáveis por julgar os ministros do STF, em caso de crime de responsabilidade, o que sublinha a complexa dinâmica entre quem julga e quem pode, futuramente, ser julgado. Relação nada saudável.

Não se trata simplesmente de uma escolha técnica de interpretação normativa. O Tribunal, enquanto instituição, carrega o poder de impor estabilidade, mas também pode projetar a imagem de um ator político que expande sua competência diante de situações de grande repercussão, de acordo com seus interesses. Esse movimento, que concede ou mantém o foro mesmo após o término do mandato contribui para a percepção de que a Corte modula seu entendimento com notável flexibilidade.

É nesse ponto que a Emenda Constitucional nº 35, promulgada em 20 de dezembro de 2001, adquire relevância: vista na ocasião como um aprimoramento institucional, com o objetivo declarado de eliminar blindagens casuísticas para parlamentares que ficavam imunes a qualquer julgamento, ela suprimiu a necessidade de autorização pela Câmara ou pelo Senado para se processar deputados ou senadores, respectivamente. Na prática, porém, como efeito não antecipado, isso resultou em um fortalecimento da competência penal do Supremo, que tende a se acentuar ainda mais quando o foro volta a valer para ex-mandatários.

Comparado a outras democracias consolidadas, o Brasil adota um foro por prerrogativa de função excepcionalmente extenso. Nos Estados Unidos, não se prevê que congressistas sejam julgados pela Suprema Corte; eles respondem à Justiça Federal comum. Na Alemanha, os parlamentares não são levados ao Tribunal Constitucional Federal por crimes comuns. E no Reino Unido, inexistem fórmulas penais especiais para membros do Parlamento, assegurando-se mecanismos de responsabilização idênticos aos aplicáveis a qualquer cidadão. O contraste reforça a atipicidade brasileira ao concentrar ações contra autoridades no STF, que, por sua vez, se vê em posição de substituir a Justiça ordinária em processos com possível impacto político.

Além disso, permanece a dimensão controversa do chamado “privilégio”: embora a opinião pública enxergue o foro como um tratamento diferenciado, a ausência de instância revisora pode ser tão desvantajosa quanto benéfica. Um congressista que confronte o Supremo responderá ao próprio tribunal, em grau único de jurisdição. Com isso, o que parecia um privilégio pode converter-se, em muitos casos, num fator de vulnerabilidade, sobretudo em períodos de tensões político-institucionais.

A proposta de emenda constitucional que extingue o foro para crimes comuns — já aprovada no Senado por iniciativa do então senador Álvaro Dias — continua parada na Câmara dos Deputados. Se promulgada, poderia unificar o regime de responsabilização das autoridades e reduzir a sensação de que o STF oscila ao sabor das conveniências ou das disputas pontuais.

No final das contas, a restauração da lógica da Súmula 394 ao mesmo tempo que reforça o poder do Supremo pode levantar questionamentos sobre a firmeza de sua isenção. 

Por fim, fica a indagação: o foro especial cumpre a função de proteger o mandato e garantir a independência dos cargos públicos, ou apenas serve como peça num xadrez político-jurídico em que as regras podem mudar a qualquer momento? Aprovando-se o fim da prerrogativa especial de foro, o país talvez reencontre um caminho de maior estabilidade política e previsibilidade, valores essenciais ao Estado Democrático de Direito e à própria democracia.

* Doutor em Direito, professor da UFPE.

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