O novo consignado: alívio agora, angústia depois
Senhoras e senhores, mais de meio milhão de brasileiros — exatamente 532.743 — bateram à porta dos bancos desde 21 de março, seduzidos pela promessa de crédito fácil, juros baixos e a segurança ilusória do desconto direto na folha. Nas vitrines reluzentes do governo, o “Crédito do Trabalhador”, disponível pela Carteira de Trabalho Digital, é vendido como o milagre da inclusão produtiva. Mas o que parece um trampolim para a dignidade pode muito bem ser a rampa suave para o endividamento silencioso.
Em Minas Gerais, por exemplo, 44.324 contratos foram firmados em menos de duas semanas, movimentando R$ 283,4 milhões em empréstimos. Um salto digno de nota, colocando o estado em terceiro lugar no ranking nacional, atrás apenas de São Paulo e Rio de Janeiro. O valor médio por contrato é de R$ 6.395,16, parcelado em 18 suaves vezes de R$ 352,73. Suaves, claro, enquanto o emprego durar.
No total, o Brasil viu R$ 3,3 bilhões serem despejados em crédito consignado em menos de duas semanas. O governo comemora o feito como o início de uma “nova cultura de crédito”, nas palavras do ministro Luiz Marinho, com direito a fogos, palmas e powerpoints em Brasília. Mas quem já viu a história de perto sabe que, neste país, a distância entre a inclusão e a ilusão pode ser de apenas uma digital.
Ora, convenhamos. Estamos falando de um país com mais de 47 milhões de trabalhadores com carteira assinada, dos quais boa parte vive com salários comprimidos, pressão inflacionária nos alimentos e combustíveis, e a eterna corda bamba entre o fim do mês e o início do próximo. O que parecia alívio vira aperto quando o trabalhador se vê com 35% do seu salário comprometido por 18 ou até 20 meses.
E se o desemprego vier? Se o patrão não renovar? Se o salário atrasar ou a inflação comer os centavos que sobram? Vai recorrer a quem? Ao aplicativo da carteira digital? Aos bancos que já embutiram o risco no contrato e dormirão tranquilos?
Não se trata aqui de criticar o o ao crédito — que, quando bem feito, é sim ferramenta de emancipação. Trata-se de questionar o modelo de sociedade em que empurramos trabalhadores a se endividarem para sobreviver. E, pior, chamamos isso de “inclusão”. Quando o Estado celebra o volume de empréstimos como se fosse indicador de desenvolvimento, algo está estruturalmente errado.
No Distrito Federal, a média dos empréstimos a dos R$ 9.800. Não é crédito para trocar a geladeira. É para pagar o mercado, o gás, o aluguel. É a expressão direta de uma população sufocada e que agora encontra alívio no que pode se tornar um novo sufoco.
E o risco maior está exatamente aí: em não preparar o trabalhador para lidar com o crédito, em não reforçar a política de educação financeira, em não garantir estabilidade no emprego e renda para honrar compromissos assumidos hoje, no calor da necessidade.
Decisões precipitadas, baseadas em promessas de propaganda, criam o solo fértil para o superendividamento, ainda mais quando envolvem uma camada já vulnerável da população. E o que hoje é “inovação” pode, amanhã, virar manchete sobre inadimplência recorde, filas nos Procons e bancos confiscando sonhos parcelados.
Portanto, meu caro leitor, desconfie do “novo” quando ele parece bom demais para ser verdade. Porque, no Brasil, o que vem embalado em novidade muitas vezes é o mesmo problema de sempre — só que com F e parcelamento em dia.
E que ninguém se engane: estamos ensinando o trabalhador a se endividar antes de ensiná-lo a se proteger. Um caminho perigoso, silencioso e que, se não for revertido com políticas firmes e realistas, será mais um daqueles erros pelos quais pagaremos a conta depois — com juros, correção monetária e lágrimas. Com um grito engasgado no peito e a lucidez de quem não tinha medo de dizer o óbvio.
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