Revitimização e impunidade: o ciclo vicioso que silencia vítimas de estupro no Brasil
Leio na Folha de Pernambuco sobre o caso de uma jovem de 16 anos, estuprada quando retornava da escola para casa em Olinda. O homem - com antecedentes criminais - se sentou ao lado da adolescente dentro do ônibus e, com uso de uma arma de fogo, obrigou que a vítima descesse do coletivo. Após consumar os abusos, mandou que saísse do local sem olhar para trás, se não atirava na cabeça dela.
A mãe da jovem disse em entrevista que ficou um pouco mais tranquila ao saber que o agressor havia sido preso, mas relatou que sua filha desenvolveu “depressão, ansiedade e síndrome do pânico, com medo até do dia e da noite, da luz e da escuridão”. Ao final, demonstrou preocupação com a possibilidade de que o medo de denunciar – seja por receio do agressor ou do próprio sistema – tenha silenciado muitas outras vítimas.
Os criminólogos apontam que são dois os principais motivos para que as vítimas de crimes sexuais não procurem a polícia: o receio da revitimização e a falta de confiança no sistema de justiça criminal.
A revitimização ocorre quando a vítima sofre mais danos, não como resultado direto do crime, mas em consequência das interações com as instituições durante a persecução penal (tais como prestar depoimentos, realizar perícias ou se expor à presença do réu) ou do tratamento dispensado pela própria comunidade no acolhimento da mulher vitimada, minimizando seu sofrimento, estigmatizando ou até culpando-a pelo crime sofrido.
Por outro lado, a falta de confiança no sistema de justiça criminal está relacionada a baixa expectativa de que o agressor seja punido de forma suficiente a reparar todo mal que causou e seja efetivamente impedido de praticar novos crimes contra outras vítimas.
Sobre este ponto, para que o leitor tenha ideia do tratamento penal dispensado aos agressores sexuais em nosso país, cita-se o caso do Maníaco do Parque das Nações de Campo Grande-MS. Condenado a uma pena de 34 anos de prisão pela prática de 10 estupros, obteve a progressão de regime após o cumprimento de 26% (9 anos) da condenação. Em meios abertos, estuprou pelo menos cinco mulheres. Entre as vítimas, duas adolescentes de 14 e 17 anos.
É preciso registrar que não se tem notícia de nenhum outro lugar do mundo em que o autor de um crime de estupro pode, a depender da pena aplicada, iniciar a pena em meios abertos, o que de fato ocorre no Brasil.
Talvez seja este o motivo pelo qual o IPEA aponta que apenas 8,5% dos casos de estupro chegam ao conhecimento da polícia no Brasil. A considerar a cifra oculta,
estima-se que nosso país tem cerca de 822 mil casos de estupro a cada ano, dois por minuto, o que, infelizmente, nos coloca no topo do ranking mundial de crimes desta natureza.
Enquanto decisões como a da Corte Interamericana de Direitos Humanos podem, paradoxalmente, resultar na redução da pena pela metade para alguns detentos em Pernambuco, para as vítimas de crimes sexuais, cada dia de sofrimento é contado em dobro, ao saber que em pouco tempo seus algozes estarão de volta às ruas e que, a qualquer momento, podem se deparar com eles em alguma esquina.
* Autor do livro “O Brasil prende demais?”. Pesquisador e especialista em Direito Penal e Processo Penal, com MBA em Gestão de Segurança Pública.
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