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Estados Unidos

Trump instrumentaliza o antissemitismo, dizem acadêmicos e ativistas

Cerco a universidades e restrição de vistos a 19 países são exemplos de manipulação para avançar políticas antiliberais

Os dois atentados contra judeus nos EUA nas últimas duas semanas, com duas mortes e 15 feridos, assustaram a comunidade judaica no país, estimada em 7,2 milhões de pessoas, em estado de alerta desde a onda de protestos pacíficos nas ruas e nas universidades contra as ações militares de Israel na Faixa de Gaza, iniciada após os ataques do grupo terrorista Hamas, em outubro de 2023.

E também lapidaram a crítica de acadêmicos e organizações de defesa dos direitos humanos sobre o que denunciam ser a manipulação, pela Casa Branca, do antissemitismo, com o objetivo de avançar políticas antiliberais.

— Neste momento, mais do que nunca, é importante ter a clareza de que a extrema direita instrumentaliza o antissemitismo com objetivo político claro. E o faz de má-fé, posto que é historicamente antissemita. As universidades são seu alvo prioritário e travestem o assalto à difusão de conhecimento livre como combate aos ataques que de fato sofremos. Para nós, judeus, é um insulto sermos usados desta maneira — afirma ao GLOBO Lewis Gordon, diretor da Escola de Filosofia da Universidade de Connecticut.

Ataques nos EUA

Em 21 de maio, dois funcionários da Embaixada de Israel nos EUA foram mortos a tiros ao saírem do Museu Judaico, em Washington.

A polícia informou que um americano do estado de Illinois afirmou ter cometido os crimes "por Gaza" e defendeu "trazer a guerra para os EUA, que fornece armas a Israel para o genocídio".

No domingo ado, de acordo com o FBI, um egípcio com visto vencido de turista atacou, com um lança-chamas improvisado, em Boulder, no Colorado, manifestantes que semanalmente pedem, no mesmo local, a libertação dos reféns israelenses detidos pelo Hamas.

Segundo o Ministério da Saúde de Gaza, controlado pelo Hamas, quase 55 mil palestinos, a maioria civis, foram mortos por ações israelenses desde outubro de 2023. Denúncias de limpeza étnica e proibição da entrada de alimentos no enclave se multiplicam.

A ONU registra que 120 acadêmicos, 180 jornalistas e 224 profissionais de ajuda humanitária pereceram nos 21 meses de conflito no enclave. O governo de Benjamin Netanyahu, por sua vez, informa que 1.706 israelenses — quase 1.200, em sua maioria civis, no 7 de outubro — perderam suas vidas e que a vasta maioria dos palestinos morreu como escudo humano do Hamas.

Nos dois atentados nos EUA relacionados ao conflito, testemunhas contaram que os suspeitos gritaram “Palestina livre”. O governo americano classificou-os como atos de antissemitismo e de terrorismo.

Ted Deutch, CEO do American Jewish Comittee (AJC), enfatizou o desmoronamento da fronteira entre retórica e violência contra judeus nos EUA desde o início da guerra em Gaza.

Em entrevista à CNN reproduzida nas redes sociais de diversos grupos de defesa de direitos humanos, o advogado e ex-deputado do Partido Democrata na Flórida afirma que "é legítimo e irável defender os direitos dos palestinos, mas, quando os mesmos ativistas permanecem em silêncio diante da demonização dos judeus, tragicamente as comunidades judaicas ao redor do mundo pagam o preço".

— Os horrores que Israel comete em Gaza, e que temos o dever moral de denunciar, de fato não oferecem carta-branca para atos violentos contra judeus. E os atentados recentes indicam sim perigosa escalada do antissemitismo anos EUA, e devemos criticar duramente quem tenta reduzi-los a ataques a Israel. Mas antissemitismo não tem lado e é igualmente perigoso para nós, judeus, fecharmos neste momento os olhos para a manipulação em curso pela direita — diz ao GLOBO o historiador israelense Arie Dubnov, diretor do Centro de Estudos de Israel da Universidade George Washington.

Cartilha trumpista

O acadêmico lembra que o atentado mais letal contra judeus na História dos EUA se deu em 2018, quando um militante de extrema direita matou 11 pessoas e feriu outras seis. As vítimas frequentavam uma sinagoga na Pensilvânia engajada no auxílio humanitário a imigrantes recém-chegados da América Central.

Dubnov aponta como catalisadores da instrumentalização política do antissemitismo pela direita grupos conservadores, entre eles a Heritage Foundation, que ganhou notoriedade no ano ado pela elaboração do "Projeto 2025", com indicações de governança ultraconservadoras, boa parte delas aplicadas pelo atual governo. O centro de estudos apresentou em outubro sua “estratégia nacional de combate ao antissemitismo”. A iniciativa propõe o "desmantelamento" de organizações "anti-israelenses", da "rede de apoio ao Hamas", "infiltrada" em universidades, "entre elas Columbia e Harvard".

Dentre as medidas defendidas estão a demissão de professores, bloqueio ao o de estudantes estrangeiros às universidades e de instituições aos recursos públicos. Todas presentes na cartilha que o presidente dos EUA busca impor desde janeiro.

Donald Trump sublinhou os dois atentados recentes ao anunciar decreto, em vigor a partir de amanhã, que restringe a entrada nos EUA de cidadãos de 19 países, em sua maioria com população majoritariamente muçulmana. Também voltou a afirmar que as universidades do país têm falhado em proteger os direitos civis de estudantes judeus.

Em fevereiro, uma das alegações de Washington para interromper parcerias de US$ 400 milhões com Columbia foi "prática de antissemitismo sem punição". Além da proibição de acampamentos e da detenção e expulsão de estudantes, uma das medidas exigidas por Washington e acatadas pela instituição foi a remodelação de seu Instituto de Estudos do Oriente Médio.

Disputa legal

Harvard anunciou medidas para assegurar a segurança dos estudantes judeus e entrou em disputa legal contra a Presidência. O Executivo, como retaliação, busca proibir a matrícula de estrangeiros em um dos mais conceituados centros de estudos superiores do planeta.

Organizações judaicas, com representatividade na comunidade americana, reagiram à movimentação do governo. Stefanie Fox, diretora da Jewish Voice for Peace (JVP), diz não ter dúvidas do uso político do antissemismo para o avanço do movimento “Faça os EUA Grandes Novamente” (Maga, na sigla em inglês). A JVP é citada pela Heritage como integrante da “rede de apoio” do Hamas. “O que é infundado, paranoico e ridículo", afirmou Fox à agência AFP.


— Infelizmente, existe, como em toda sociedade, antissemitismo nos campi, mas as universidades americanas o têm combatido dentro e fora das salas de aula. A hipérbole trumpista é apenas uma ferramenta para eliminar quem pensa diferente do governo e um tiro no nosso próprio pé, pois afeta professores e estudantes judeus ao cortar verbas para o ensino e dirigi-las a outros fins — afirma Gordon.

Pesquisa realizada este ano pelo Jewish Voters Resource Center, especializado no eleitorado judaico nos EUA, mostra que 89% dos entrevistados se dizem preocupados com o aumento do antissemitismo no país, mas 64% desaprovam os esforços do presidente para combatê-lo.

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